Estava
sentado diante da televisão. A sala minúscula dava para um quartinho onde
cabiam uma cama e uma pequena cômoda com seus livros. Eram muitos. Uma pequena
abertura levava ao banheiro, no qual havia um sanitário e um chuveiro mal
instalado no piso rachado. Na parede, ladrilhos sujos e um buraquinho, feito
por ele próprio, onde colocava o sabonete, a bucha e o xampu. Tinha mais livros
do que xampu.
Na TV,
uma reportagem qualquer sobre a guerra civil na Inglaterra dava um clima
sobrecarregado ao lugar. Ou seria a fumaça de seu último Derby que lhe dava
aquela sensação esquisita?
Ao fim
das duas esfihas de carne e do copo de Kuat quente, levantou-se encaminhando até a
porta. Girando a maçaneta fria sentiu o ar daquela tarde iluminar seu rosto.
Hesitou em sair. O dia estava maravilhoso e precisava de mais cigarros. Tinha
que sair. Saiu.
Na fila
do caixa com seu velho e inseparável cigarro nas mãos, ponderava se a covardia
que o colocava em cheque naquele mercadinho medíocre da esquina não o faria
mais mal do que a doença que carregava consigo. Chegou sua vez. O coração bateu
mais forte, a respiração piorou, não conseguia olhar para frente. Ela era muito
bonita. Quase desmaiou quando ouviu a voz mais doce do mundo:
- Mais
alguma coisa senhor?
Diante
de seus olhos estava a garota com quem sonhava todas as noites desde que mudara
para aquele cortiço no outro lado da rua. O simples movimento de passar o
aparelho no código de barras do produto e dizer “R$3,30, por favor,” era
extremamente delicado e o levava a loucura.
- Mais
alguma coisa senhor? – Repetiu.
“Meu
deus! Como ela é linda”.
Passou
a mão no boné da Levi’s ainda sujo com o pó daquele sofá
imundo.
- Vou
levar esse xampu – Apontou.
Sabia
que só tinha dinheiro para o cigarro, mas queria mesmo levar o xampu. Se
levasse, talvez ela o olhasse de outro jeito na próxima vez que se vissem.
Subitamente continuou apontando o xampu até que ela o tocasse e colocasse no
balcão.
Abriu a
carteira. Ao lado do titulo de eleitor e seu RG com a foto de quando ainda
tinha 16 anos, apenas duas notas de dois reais.
-
Esqueça, vou levar apenas o xampu – disse rapidamente.
“Hã?
Não, seu idiota! É o cigarro que você quer não o xampu, o xampu não vai
satisfazer seu vicio, o cigarro é que lhe dará prazer, o xampu é só mais um
produto de beleza, o xampu não te serve cara, pede o cigarro, o cigarro,
burro”.
Mas não
conseguia corrigir o erro vendo que ela pegava com suas mãos maravilhosas o
xampu e apagava no teclado do computador o preço do Derby azul. Olhou o preço
do xampu: R$3,50.
Naquela
noite não fumou cigarro. Tomou banho, um banho que jamais tomara na vida, pois
tomou banho com o xampu que ela tocara. O xampu abençoado pelo belo anjo que
trabalhava num mercadinho da esquina. O anjo ao qual dirigiu a palavra pela
primeira vez em meses naquela tarde.
Riu.
Como pudera comprar aquele xampu barato ao invés de seu bom e velho Derby? Só
podia estar enlouquecendo. É, só podia estar ficando maluco.
Lembrou
do fino decote na blusinha azul-marinho e dos braços brancos como a neve que
revelavam uma pequena tatuagem no pulso. Uma tatuagem quase invisível por causa
da pulseira do relógio rosa bebê que combinava com a presilha na cabeça.
Tinha
falado com ela, jamais esqueceria esse dia. Estava tomando banho com um xampu
novo por causa dela. Não ia mesmo esquecer aquele dia.
Quando
prometeu a si mesmo nunca mais ficar tão sem graça na frente dela, sentiu um
aperto no peito.
Repentina
e sufocadamente a dor aumentava. Ele se curvou levemente no pequeno Box.
Respiração rarefeita, coração cada vez menos pulsante. Água caia-lhe pelo
rosto. Tentou segurar no xampu quando levou um tombo inevitável. Falha na
visão. Tontura.
Afinal,
o seu inseparável Derby não iria desistir dele tão fácil. Ia lutar para tê-lo.
Estava lutando para tê-lo dentro do próprio pulmão naquele exato momento.
Chegava a hora. Tinha ganhado a batalha quando deixara o cigarro no balcão
naquela tarde, mais tinha acabado de perder a guerra, seu pulmão empregava agora
suas ultimas forças para lutar contra seu câncer. Perdeu completamente o ar. O
pulmão desistira da guerra. A ultima coisa que viu foi a imagem de um anjo
branco aproximando-se dele. O anjo mais lindo que já tinha imaginado na vida.
Um anjo com uma pequena tatuagem no pulso destorcida pelo que parecia a
pulseira de um relógio rosa bebê. Nunca mais viu as presilhas que combinavam
tão bem com aquele relógio. Nunca mais a viu. Nunca mais viu ninguém.
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