No auge de seus oito meses, uma idade um
pouco avançada para alguém de seu grafite, o lápis repousava inquieto na imensa
escuridão da divisória.
Era um lápis azul escuro, feito de madeira
extraída do sul do estado do Amapá, de árvores agora distantes cujo cheiro era
a única lembrança que tinha. Sua ponta já não saía mais dele sem se quebrar e
seu tamanho já poderia ser comparado ao depósito do apontador que tantas vezes
o fizera diminuir até que ficasse inapontável e, assim, inútil aos olhos do
dono.
Agora, na escuridão da terceira divisória
do estojo, lhe faziam companhia outros dois pequenos lápis desapontados,
algumas velhas cascas do que foram pedaços de seus amigos, uma borracha com os
velhos sim e não rabiscados nas extremidades além de três clipes enferrujados
pelo tempo.
O velho lápis azul fitou seus
companheiros, olhou nos olhos de cada um e percebeu onde estava. A
terceira divisória do estojo era a parte mais escura do mesmo, o lugar onde os
lápis sempre temeram ir, mas que fazia parte do destino de todos eles. O lugar
mais sujo e menos desejado, inevitável até mesmo aos mais bravos e resistentes
lápis e que se abria muito pouco, só no caso de um outro lápis ser jogado ali
ou no caso mais esperado por todos: A faxina que o garoto fazia de tempos em
tempos no estojo e que punha fim na história de cada um deles.
Ele sabia onde estava, era a terceira
divisória, a ultima etapa da vida dele, que se iniciava numa fabrica na capital
junto a mais onze dos seus amigos unidos por acaso na mesma caixinha e
terminava em um lugar que era lenda entre os mais novos, angustia dos mais
acostumados e realidade para ele agora. Na segunda metade do ano escolar, sabia
exatamente quantas vezes tinha sido apontado. Lembrava de cada casca perdida
que lhe diminuía cada vez mais e colocava-o mais próximo do fim.
Não sabia o que esperar dali em
diante, uma abertura no zíper na divisória poderia significar uma companhia a
mais para a hora de sua morte ou a própria morte, quem sabe? Sabia que não era
mais útil, não era mais o esbelto lápis de cor que um dia colorira um caderno
de desenhos e que era apenas uma questão de tempo até que fosse direto para uma
lixeira qualquer misturado à sujeira que com sorte seria reciclada e daria
origem a outra vida. Esperava que essa nova vida pudesse ser tão colorida
quanto fora a sua e que o que quer que acontecesse a ele dali para frente
pudesse fazer sua vida valer a pena.
Foi de repente que tudo aconteceu, um
baque surdo chacoalhou o estojo e o derrubou no chão, o zíper da terceira
divisória preso em alguma coisa se abriu repentinamente e pela primeira vez em
muito tempo todos ali viram a luz ao se espalharem pelo piso da sala de aula. O
lápis azul viu três clipes brilharem e cascas coloridas de lápis sujarem a
sala.
Ele rolou para debaixo da cadeira. Já
esquecido pelo dono, ficou ali parado e não foi recolhido junto com as demais
coisas que rolaram com a queda do estojo. Um dia inteiro se passou, o garoto
fora embora junto á outras crianças e ele ficou ali, imaginando se o cenário do
fim de sua vida seria um enfileirado de carteiras e um quadro negro.
Foi quando uma ironia do destino trouxe a
sala uma velha faxineira que o puxou com a vassoura, mas não o colocou na
lixeira, ao invés disso pegou o lápis com cuidado e o colocou numa caixinha de
madeira levando-o para sabe Deus lá onde.
Engraçado como a vida prega peças,
estranho como ela caminha de maneiras diferentes para um mesmo destino te
derrubando e te fazendo sorrir em atitudes envolventes e inesperadas.
Ninguém sabe como nem porque. O fato é
que não muito tempo depois, o garoto achou muito familiar um lápis azul colado
no teto de uma casinha de uma maquete que compunha um dos muitos trabalhos
artesanais expostos em uma feira na escola. A casinha era inteira feita de
lápis velhos e tinha pequenas divisões que davam-lhe um charme sem igual. O
lápis estava lá, sendo útil de novo mesmo depois de tanto tempo. Compondo a
terceira divisória do telhado de uma obra de arte.
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