Apocalipse Zumbi

               Não havia janela na casa. Era uma construção sólida de tijolo baiano e acabamento em folhas de aço que a tornava maciça.

                A porta, a única entrada e saída, era de madeira preciosa, a mais resistente que ele encontrara.

                Um pouco acima dela, à direita, o compressor do ar-condicionado indicava que o ar respirado lá dentro não era o mesmo que do lado de fora. Se pudéssemos entrar sentiríamos a cortina de ar ao passar pela porta, que servia para manter a maior retenção de ar limpo lá dentro.

                O sistema de arrefecimento era complexo e elaborado por ele há anos, realizado de forma a não precisar de manutenção por muito tempo e ainda assim, quando precisasse, a troca do capacitor, por exemplo, pudesse ser realizada de dentro de casa mesmo, sem a necessidade de subir no teto.

                Ele estava seguro lá dentro, havia mantimentos por pelo menos mais um ano até que precisasse sair em busca de comida de novo, o que lhe dava certa folga.

                Não esperava ter que sair naquela manhã, mas um dos canos de esgoto que passava pelo jardim estourara e começara a jorrar coliformes fecais em seu jardim.

                Ah, o jardim! Além da horta que abastecia logo à frente da porta de entrada, havia uma imensa flora que se iniciara com pequenas mudas, agora já crescidas de Sanseviera Cylindrica, as conhecidas “espadas-de-São-Jorge”, as quais eram geneticamente modificadas para atingir o tamanho de cerca de dois metros de altura. Plantas que ele achava horríveis, mas que serviam um propósito.

                Eram uteis pois guardavam a casa como um poderoso forte além de manterem o ar da vasta plantação renovado. Sabia que aquelas plantas tinham um processo de fotossíntese diferenciado, que liberava mais oxigênio na atmosfera que as demais.

                À frente da plantação, via-se uma gigantesca redoma de vidro feita de material transparente e que continha minúsculas perfurações por ela toda, com tecnologia através da qual era possível o compartilhamento de gases externos e internos. Uma verdadeira peneira gigante que filtrava o ar que adentrava o jardim de suas fiéis Sansevieras. Tal redoma dava a volta na residência e transformava ele e aquela plantação partes de uma futurística estufa.

                Depois da pandemia era o que precisava: renovação automática e natural do oxigênio no ambiente. Quanto mais respirasse o próprio ar, mais seguro ele estava. Pelo menos até uma nova mutação.

                Assim, ele fora o único na vizinhança esperto o suficiente para estocar comida e se distanciar da atmosfera comum. Como botânico e engenheiro naval reformado no exército, soube também vincular o sistema de irrigação do jardim ao de eletricidade da casa, o que o mantinha limpo e aquecido.

                Precisava sair agora e sempre que o fazia utilizava o velho escafandro da marinha, o qual, com algumas adaptações, lhe conferia mais de dez horas de oxigênio proveniente do sistema interno da residência: O capacete, uma esfera metálica com uma engenhoca que ligava oxigênio de lá dentro da casa a sua roupa, era grande e redondo. Saindo das costas da roupa uma longa cauda se perdia dentro da casa. Tal mecanismo lhe impedia de ter contato direto com o oxigênio tóxico da parte de fora e lhe confiava uma aparência que era metade a dos mergulhadores europeus do século XIX e metade a de um astronauta do século XXI.

                A roupa, há dois anos, era apenas uma máscara de mergulho, mas à medida que o vírus foi mutando, houve a necessidade de se proteger do ar até mesmo os poros de sua pele.

                Pura sorte ter guardado aquela roupa por tanto tempo, agora saía com ela em direção ao duto estourado e sua velha caixa de ferramentas, a qual desinfetaria com cloro e álcool antes de retornar à sua casa. Procedimento que já estava acostumado depois de tantos reparos como aquele através dos anos

                Lembraria também de realizar o teste de infecção pelo vírus assim que entrasse em casa para tomar as devidas providências caso a proteção daquele dia não tivesse sido suficiente. 

                Quando quase terminava o reparo no cano avistou ao longe um dos errantes. Caminhava devagar pela rua e quando chegou perto do forte de “espadas-de-São-Jorge” ficou bem mais lento.

                O zumbi – como ele chamava os infectados pelo vírus – à medida que se aproximava de seu jardim, ficava cada vez com o ar mais rarefeito e já próximo à redoma sucumbiu, mas não sem antes soltar um grito de dor e buscar refúgio na cerca elétrica que guardava as laterais do forte. Abaixo dessa cerca já haviam outros dois cadáveres putrefatos, o que indicava que amanhã seria o dia de limpeza.

                Quando entrou em sua casa após a limpeza das ferramentas e da roupa de mergulho adaptada se recostou e olhou para as mais de mil mudas empilhadas aos montes na casa.

                A cada dia, conseguia ampliar mais a área da plantação no imenso jardim, esperava até o fim do ano chegar até a cerca do lado de fora, limite da sua casa à rua. Assim, no seu centésimo aniversário ainda estaria seguro, para talvez se tornar o último ser humano na face da terra a morrer de causas naturais.

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