QUEM PÔDE JAMAIS SONDAR AS PROFUNDEZAS DO ABISMO?

 

            A última frase da última página da carta que acabara de escrever era uma referência direta ao Capitão Nemo, personagem enigmático do velho Julio Verne, no surrado livro de cabeceira que ela lhe mostrara. Ele sorriu.

            Isolado por conta do surto da desconhecida doença respiratória naquela biblioteca, hoje grande e vasta, outrora um pequeno quarto cujas prateleiras inexistiam, ele escrevia e divagava pensando em sua amada.

            Sempre lembrava dela com carinho e nostalgia. Nesses tempos tão difíceis não era diferente. A obra “O Discurso do Método” do filósofo Descartes, precursora do método científico, era o livro que ela carregava no dia em que a viu pela primeira vez. Não entendera seu conteúdo no começo. Ele riu quando lembrou que fora ela mesma quem lhe mostrou a importância daquela obra muito mais tarde.

            Foi somente com suas aulas e o tempo que passavam juntos depois disso que aprendera a enxergar a verdadeira beleza das coisas. Eram muitas as aulas que ela dava e quando ela se punha a falar não parava. Os olhos dele brilhavam, o coração palpitava e ele soava frio. Tudo inevitável, como deveria ser qualquer história de amor. Fora incrível a evolução de relacionamento de ambos durante aquele tempo. Ele nunca pensou que se apaixonaria tão perdidamente.

            Depois das aulas, já tarde da noite, divagavam olhando as estrelas através do telescópio que ele tinha. A ele ocorriam sempre pensamentos acerca do universo. Respirava fundo ao lembrar das belas citações que ela lhe fazia: “Tudo o que conhecemos é primitivo e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos”.

            Cresceram juntos e também juntos desenvolveram uma pesquisa sobre o sentimento e distância. Foi quando ia mostrar a ela os resultados recentes de sua pesquisa que toda a pandemia, inexplicavelmente, começou.

            O isolamento social imposto para conter a propagação do vírus pôs um fim a comunicação com o mundo exterior que agora era realizada somente para fins de sobrevivência. Ele sentia saudade do campus, do tempo da faculdade, dos tempos em que estavam juntos.

            A medida que a pandemia avançava, pior e mais distante ficava o seu relacionamento. No fundo, ele sabia que ela, mesmo permanecendo por muito tempo distante, ainda estava com ele. Ali, de alguma forma.

            Verteu uma lágrima de seus olhos ao perceber a saudade que tinha e agora no coração dele não havia espaço para mais nada, apenas um buraco vazio que ele tampava, ora tomando café, ora escrevendo para ela.

            Ele sempre fora precavido, mas com o vírus mudando e se tornando cada vez mais letal, foi ela quem lhe abriu os olhos para a necessidade de mais cuidados nesses tempos difíceis. De alguma forma, ela tinha dito tudo o que ele precisava para manter a saúde mental naqueles dias. Aliás, sempre dizia a coisa certa quando ele precisava.

            Certo dia, tomado por uma profunda tristeza por conta do pessimismo da pandemia, lhe acometeram pensamentos acerca da vida e seu propósito. Questionado por ele, ela respondeu, em mais uma das suas citações parafraseadas, que “o medo do invisível é semente natural daquilo que todo mundo, em seu íntimo, chama de amor”.

            As cartas, as escrevia sobre o amor, sobre os desejos e, principalmente, sobre a velocidade com que as coisas aconteceram. No fim, estava uma coisa ligada na outra e não podia, por tudo aquilo que recentemente sentia em seu coração, deixar de pôr esse sentimento no papel. Deixar de registrá-lo de alguma forma.

            Era bem verdade que se conheciam desde os primeiros anos da escola, mas só a doença que assolava o mundo agora o fez perceber o quanto falta dela fazia. No auge de seus devaneios sobre os tempos em que caminhavam pelo campus sorrindo e cantando de mãos dadas, pegava papel e caneta e lhe escrevia. Cartas que nunca chegavam e não havia como mesmo.

            Não tinha certeza, mas da última vez que ouviu falar dela, estava sobrevivendo por aparelhos, provavelmente estava morta agora. Poucos eram os que lhe davam crédito em vida e ele aprendeu depois sua real importância.

            Foi quando pensou que queria ter tido uma despedida digna que olhou para a biblioteca e teve uma brilhante ideia. De súbito, levantou, pegou alguns envelopes que retornavam por ausência de endereço e desceu a escada de máscara e luva, como ela lhe ensinara.

            A última vez que ele foi visto foi em seu laboratório. Nessa época, já diziam os jornais que surgira uma esperança, uma vacina que poderia pôr fim àquele horrível isolamento.

            O tempo passou e de alguma forma, a esperança retornava e no auge do descontentamento com todo aquele cenário mais gente se pôs a entender o que ela sempre quisera que ele e os demais entendessem. Os laboratórios estavam cheios novamente e ele compreendeu finalmente que ela ressuscitara.

            Sim, o grande amor da sua vida estava de volta! Depois de um obscuro período, ela voltava mais forte e evidente. As cartas de amor escritas por ele naquele período foram publicadas e a pandemia, enfim, acabou.

            Ele morreu logo depois sem saber se seria para sempre que ela estaria em evidência, mas morreu tendo a certeza que ela está em tudo e em tempos de desesperança, só ela, a ciência, é capaz de nos tirar do buraco.


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