Ela desceu a rua lentamente à luz
flutuante da neblina, era uma manhã fria como muitas outras e viera a calhar
naquele dia de muito trabalho. Gostava de trabalhar no frio, a confortava,
apesar de não poder sentir calafrios. Ficava imaginando como eram os arrepios
de susto que os humanos sentiam. Só de poder se colocar no lugar deles por
pequenos instantes já se sentia muito bem de estar ali. Era o que a mantinha
naquele trabalho. Trabalho duro, talvez o trabalho mais árduo que um ser humano
poderia suportar. Mas ela não era humana, não chegava nem perto de ser...
A casa surgiu atrás da fumaça matinal e
cheirava a flores baratas no jardim camuflado por duendes de barro. Se ela
pudesse tremer, tremeria de medo, odiava duendes apesar de saber que eram puro
fruto da imaginação leiga do homem.
Com sua capa negra e força sobrenatural,
sobrepujou o portãozinho de madeira que separava a casa da rua. Caiu como pluma
no jardim pálido sem amassar uma folha seca sequer. Flutuou com sua alma até a
janela mais alta e penetrou no quarto silencioso e escuro.
O garoto dormia quieto em sua cama e não
notou a presença da ilustre visita que não só viera lhe ver como também viera
arrancar-lhe a alma. Ela não ia roubá-lo, achava esse termo muito amargo e sujo
para o trabalho de um ceifador. Preferia dizer que o privaria das dores
causadas pelo destino, carregando-lhe a alma até os céus e arrancando-lhe o
sopro de vida. Gostava de ser eufêmica. O eufemismo disfarçava a dor de
ter que levar um garotinho tão pequeno nos braços, eclipsava na noite o mal
estar de saber que não era humana e que nunca ia ser.
Tinha certeza que o que sentia quando levava almas desesperadas ao purgatório e alimentava-se delas era infinitamente inumano, mas o desejo de voltar, colocar aquela alma no lugar e dar ao menos mais alguns anos de vida ao garoto não era normal para alguém como ela. Se houvesse outra maneira dela se alimentar...
Tinha certeza que o que sentia quando levava almas desesperadas ao purgatório e alimentava-se delas era infinitamente inumano, mas o desejo de voltar, colocar aquela alma no lugar e dar ao menos mais alguns anos de vida ao garoto não era normal para alguém como ela. Se houvesse outra maneira dela se alimentar...
A morte não podia sentir nada. Não tinha
esse direito, não era suficientemente humana para ter dúvidas e questionamentos
sobre seus afazeres. Ela só sentia fome, muita fome. Precisava se alimentar.
Não havia mais nada.
Tudo o que ela tinha eram almas a carregar e tudo o que queria ter eram dois órgãos: um cérebro dentro do crânio coberto pelo capuz e um autotrófico e elástico coração, onde guardaria tudo aquilo que sentia e que lhe parecia humano demais para ser verdade. Um miocárdio incomum que bombeava suas lágrimas invisíveis para seu cadavérico corpo. Uma verdadeira sacola mágica de sentimentos.
Tudo o que ela tinha eram almas a carregar e tudo o que queria ter eram dois órgãos: um cérebro dentro do crânio coberto pelo capuz e um autotrófico e elástico coração, onde guardaria tudo aquilo que sentia e que lhe parecia humano demais para ser verdade. Um miocárdio incomum que bombeava suas lágrimas invisíveis para seu cadavérico corpo. Uma verdadeira sacola mágica de sentimentos.
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